Rigidez, Semap e Akineton Retard – Revisada e ampliada

Resolvi não postar a segunda parte separadamente, ao invés disso, segue o conto completo, parte I e parte II.

Ou, se preferir, baixe a versão em PDF aqui

“De todas as minhas experiêcias “junky’s” – que incluem, cheirar cocaina e depredar uma escola, baforar cola no depósito de um prédio e ser pego mijando nos produtos de limpeza, e fumar crack com meninos de rua – essa foi sem dúvida a mais terrível e mais assustadora.”

Rigidez, Semap e Akineton Retard.

Eu estava confuso, com medo, e tinha motivos para isso, motivos que não contarei agora, mas bons motivos. Não queria ter controle sobre mim mesmo. Eu era um poço de ansiedade, queria dormir, ficar entorpecido ao ponto de não sentir nada. Não estava triste, pelo contrario, mas precisava dar um jeito naquela ansiedade toda. Já era por volta de quatro da manhã, eu estava em casa, sozinho, com sentimentos à flor da pele. Me mexia sem parar, fazendo uma espécie de dança do cachorro louco.
Precisava controlar a situação, e controlá-la significava perder o controle, perder os sentidos. Olhei em volta, procurando alguma espécie de calmante, qualquer coisa, procurei por dramin e fenergan, pois mesmo sabendo que eles me fazem sentir uma merda no dia seguinte sabia que não tinha nenhum calmante controlado em casa. Olhando na gaveta do criado mudo, achei uma caixa de “semap”. Não lembrava para o que era, nem como havia chegado ali, mas talvez pudesse ser útil. Abri a caixa, havia uma cartela de seis comprimidos. Dois estavam faltando, sobravam quatro. Puxei a bula que estava socada no fundo da caixa:


“Ação esperada do medicamento: Semap é um sedativo fraco….” Estava bom o suficiente para mim, peguei um e coloquei na boca. Era doce e se dissolvia, imaginei que era um daqueles sub-linguais ou algo no gênero, embora o tipo de embalagem me desse a impressão contrária. De qualquer forma, o gosto não era ruim e não precisei de água.
Assim que o primeiro comprimido se desfez na minha boca, já me sentia mais calmo. Imaginei que pudesse ser uma espécie de efeito placebo, não imaginava que iria fazer efeito tão rápido. Sentei-me na frente do computador e fiquei navegando na internet por um tempo, pensando em acontecimentos recentes em minha vida.
Antes que pudesse perceber já estava mastigando outro comprimido e antes de dormir já havia mastigado os quatro. Dormi como um bebê aquela noite.

Acordei me sentindo um pouco cansado, e quando desci as escadas para comer alguma coisa, percebi uma estranha tensão, que me fazia levantar os ombros e inclinar o pescoço numa posição estranha, como se estivesse segurando um telefone minúsculo entre o ombro e o pescoço. Fazendo algum esforço e me concentrando eu conseguia ficar numa posição normal, mas só para me descobrir retorcido de novo no momento seguinte.
Toda vez que cruzava com alguém pela casa eu tentava disfarçar, sem saber ao certo o que estava acontecendo comigo. Como eu conseguia voltar para uma posição normal com um certo esforço, achei que podia ser algo psicológico ou qualquer coisa assim. Decidi voltar para o quarto e deitar um pouco. Daí lembrei do remédio, procurei a caixinha e achei a bula:

“Reações adversas:… rigidez muscular…”

Eu estava completamente lúcido, mas meus esforços mentais estavam todos em controlar meu corpo. Logo depois, meu braço direito começou a se enrijecer e dobrar. Depois meus olhos, de forma que, se eu conseguisse ficar numa posição normal e tentasse focar alguma coisa, primeiro os meus olhos virariam pra cima, depois o pescoço iria junto me fazendo quase olhar pra trás, e depois os braços. Algum tempo depois, estava exausto, e muito ansioso. Estava esperando um e-mail. Precisava ler aquele e-mail. Ainda não tinha certeza do que estava acontecendo comigo, me sentia um tanto envergonhado, não queria que me vissem daquele jeito.
Levantei da cama e fui até o computador, fiz um tremendo esforço para abrir o e-mail. Estava de pé, tentando ler, tentando ficar numa posição normal. Acabei com o rosto colado na parede, completamente retorcido. A única coisa que pensava era que precisava de um cigarro, e deitar na cama. Escorreguei com o rosto na parede até que cheguei com o meu queixo na quina da mesa do computador. Escorreguei durante mais de uma hora, até acabar com o rosto no chão, sem controle sobre meu corpo, e com o rosto inteiro machucado.
Fiquei deitado com a cara no chão durante um bom tempo até que minha mãe abriu a porta do quarto, me chamou, e me viu caído, com o rosto no chão e os olhos esbugalhados. Ficou desesperada. Meu irmão veio ver o que estava acontecendo, me colocou na cama e me deu um cigarro. Com uma certa ajuda consegui descer a escada e entrar no carro.
No hospital ganhei uma cadeira de rodas e quando a médica do PS me perguntou se havia tomado alguma coisa eu respondi “Semap, 80mg”, mas ela pareceu não dar importância. Eu tinha que fazer um tremendo esforço para falar. Quando me perguntavam o que estava acontecendo, eu respondia com a boca torta “Não sei”. Minha mãe havia ido embora e chamado meu pai, que ficou comigo e com o meu irmão no hospital, segurando minha cabeça para que eu olhasse pra frente, o que era a única coisa confortável pra mim naquela hora.
O mais desesperador naquela situação era perceber que ninguém parecia saber o que havia de errado comigo. Após me darem  um Diazepam, o que não mudou em nada a situação. Os médicos do PS chegaram a cogitar a hipótese de me mandar pra casa.
Eu tenho transtorno obsessivo compulsivo, e naquela hora, me convenci de que se eu conseguisse encostar o meu queixo no peito, sairia de lá andando. Demorei aproximadamente meia hora para conseguir, foi realmente desesperador. Estava exausto, meu cérebro parecia que estava derretendo. A frase “feliz como uma vaca” saída de um texto do Bukowski me veio à cabeça.
Ao tentar esclarecer se eu iria embora ou não, um médico residente perguntou ao meu irmão se eu era sempre “desse jeito”. Meu irmão ficou um tanto revoltado, já que “esse jeito” era o motivo de estarmos no hospital. Eu achei engraçado e sorri, o que deve ter sido uma coisa realmente estranha de se ver, já que um lado do meu rosto estava mais retorcido que o outro e eu mantinha os dois olhos completamente arregalados.
Tranquilizei-me ao saber que não ia pra casa, não ainda pelo menos.
Só consegui falar de novo horas depois, com a boca ainda mais torta, quando após questionar a médica sobre quais eram as hipóteses pro meu diagnóstico ouvi meu pai dizer que podia, – entre outras coisas que, confesso, eu não me lembro – ser uma intoxicação. “E se for uma intoxicação?” perguntei, e ri ao ver como minha voz estava saindo por causa da boca torta. Era uma situação tragicômica. Ele respondeu que então teríamos que descobrir intoxicação pelo quê, e descobrir o  antídoto. “Semap 80 mg”, eu disse novamente, e dessa vez meu pai se certificou de fazer com que a médica checasse isso.
Devo ter apagado um tempo, pois a próxima coisa de que me lembro era de estar deitado numa maca, com um tubo intravenoso no braço, alguém me virando de costas e me aplicando uma injeção. Funcionou feito mágica, levantei num pulo e antes mesmo que tirarem o tubo de IV do meu braço queria sair andando e ir embora. Respirei aliviado, estava feliz, mas não “feliz como uma vaca”. Eu estava num estado de agitação e entorpecimento que não conseguiria explicar. Eu esquecia o que estava falando no meio das frases, mas me sentia fisicamente confortável, meu corpo estava leve e o remédio fazia com que me sentisse como se estivesse flutuando. Cheguei em casa de madrugada, e não lembro por que, nem como, mas tomei quase uma caixa inteira de Dramin antes de dormir.

No dia seguinte, acordei e desci correndo para fazer café da manhã para minha namorada que estava dormindo comigo. Eram sete da manhã, desci e preparei um queijo quente para ela, por que eu mesmo não estava com fome. Enquanto estava preparando o sanduíche, a garrafa de coca-cola que estava em cima da mesa disse para mim:
“Mas ela não está aqui”
Não lembro o que respondi para a garrafa, mas respondi alguma coisa em voz alta, embora em algum nível de consciência eu sabia que era loucura. Estava delirando, tentei me manter calmo, mesmo sabendo que havia perdido – parcialmente pelo menos – o contato com a realidade. Foi quando percebi que ela de fato não estava em casa que comecei a ficar assustado. Liguei para ela na mesma hora:
– Por que você foi embora? Aconteceu alguma coisa? Como você foi?
E ela, com muito sono:
– Calma, eu não tava aí, eu não fui aí.
– Ah é?
– É.
Ela não estava entendendo nada, não posso imaginar o tenha passado em sua cabeça ao receber uma ligação assim às sete horas da manhã.
– Certo
E desliguei o telefone, troquei mais umas palavras com a garrafa de coca-cola, resolvi que comeria o queijo quente, mesmo sem fome, depois subi as escadas e voltei a dormir.

Quando acordei novamente, um pouco mais tarde, já não estava mais delirante. Sabia bem o que estava acontecendo e dei risada ao lembrar o que acontecera mais cedo. Estava feliz pelo fato de a rigidez ter ido embora, mas estava tomado por uma agitação física muito grande, que me lembrava o mesmo efeito que já havia experimentado com outros remédios – como plasil e risperdal – só que numa escala muito maior.
Não conseguia fazer nada, sentava na frente do computador e tentava me distrair sem sucesso. Resolvi que voltaria ao hospital para tomar mais daquele “antídoto”.
Tive sorte de a médica que me atendeu na madrugada anterior ainda se encontrar ali. Eu estava numa sala, tentando explicar a situação para duas residentes, e não tinha tido muito progresso, quando ela abriu a porta. Contei-lhe o que estava acontecendo, e sem mais demoras me deu outra injeção. Fui de novo pro país das maravilhas.
Embora o antídoto propriamente dito não me causasse delírio, – o delírio, como vim a descobrir mais tarde foi causado pela mistura do Dramim com as outras substâncias – quando administrado intravenosamente me deixava completamente drogado, incapaz de manter uma conversação por mais de dois minutos, mas por outro lado, me causava uma sensação física demasiadamente boa. Ainda assim, sob o efeito do Akineton – o “antídoto” – formatei meu computador, – coisa que estava para fazer há um bom tempo – e não me perguntei como, consegui não perder nenhum arquivo importante.
Nos dias seguintes, minha mãe conseguiu para mim uma receita do Akineton com uma antiga psiquiatra minha, para que eu não precisasse ir toda vez ao pronto-socorro, já que a sensação de inquietação persistia e era demasiadamente incapacitante para passar desapercebida.
Administrar o Akineton foi um problema para todos. Não queriam que ficasse na minha mão, por que era altamente viciante. Mas ninguém tinha como traçar uma linha divisória entre o quanto eu queria tomar porque estava sofrendo, e o quanto eu queria tomar por que era gostoso. Eu queria tomar pelos dois motivos. E pra completar, junto com isso eu estava vivendo uma crise emocional, pessoal, minha, da qual ninguém sabia direito, o que me deixava ainda mais afim de tomar o Akineton. Embora os comprimidos não me fizessem esquecer das coisas e nem alterassem o estado mental minimamente, ainda assim era extremamente gostoso.
Houveram algumas brigas feias em casa entre mim e minha mãe. Todas elas por causa do remédio. Houve até uma vez que ela, por não aguentar mais – e eu admito que não estava sendo fácil – me entregou uma cartela com 10 akinetons. Tomei-os de madrugada – todos – e me deixou acordado por mais um dia inteiro.
As semanas que se seguiram foram bastante cheias, com meus próprios demônios, consultas em psiquiatras, e uma relação amorosa enfrentando uma crise. Percebi o quanto eu estava agindo de forma impulsiva e como estava descontrolado. Pude enxergar tudo isso e comecei uma nova terapia. Claro que exibi comportamentos clássicos de um viciado em drogas, mas os eventos que se passaram foram somente os sintomas que me permitiram enxergar um problema maior, de natureza mais fundamental. E quando a hora veio, de ter que parar com o Akineton, no dia seguinte nem lembrei mais dele.

A história pode parecer engraçada, mas confesso que nunca tive tanto medo. De todas as minhas experiêcias “junky’s” que tive, essa foi sem dúvida a mais terrível e mais assustadora.
Já estava há um tempo sem usar drogas antes dessa história e continuo sem até hoje. Mas assumi uma atitude completamente diferente diante de remédios, e me dei conta da sorte que eu tive de ter conseguido reverter os sintomas que eu senti.

~ por psekkel em janeiro 6, 2009.

3 Respostas to “Rigidez, Semap e Akineton Retard – Revisada e ampliada”

  1. Só não entendi de onde veio o medo… Foi a paralisia causada pelo Semap?

    E arruma esse feed RSS e volta a escrever no blog.

  2. Irmão ainda bem que vc está bem e com agente! Vc é um vencendor! abraçãooo do mestre!

  3. sds

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